terça-feira, janeiro 27, 2009

Corrente

6 da manhã o despertador toca, ele se arrasta da cama como zumbi, mas ele queria poder levantar de um salto e apreciar a beleza de mais um dia. Os olhos no espelho são vazios e as olheiras roxas ele já se acostumou, a vontade que ele tinha era que esses mesmos olhos fulgurassem com alguma melodia de uma canção que aprendeu quando criança. Já nem lembra mais. Lê o caderno policial impassível, querendo que ao menos uma lágrima lavasse seu rosto ao ver mais uma vítima de uma estupidez diária qualquer. Vê as notícias na tv, mas a vontade é ver qualquer espetáculo cuja beleza pudesse arrebatar todos os seus sentidos. Toma café ouvindo a cidade, sua cacofonia anti-poética, mas queria ouvir uma poesia recitada por uma voz levemente embriagada, ele próprio levemente embriagado. Espera o ônibus chegar, os rostos ao seu redor não o deixam esquecer seu espelho, mas queria rostos alegres, gargalhadas desenfreadas, ataques de risos de dar câimbra nas maçãs do rosto. Paga a passagem e recebe o troco do trocador, quase um autômato, a vontade que tinha era desejar-lhe bom dia. O balanço errático do ônibus nem irrita-o mais, a vontade que tinha era ele próprio se balançar mais errático ainda. Senta-se ereto em sua cadeira no trabalho, datilografa palavras sem vida, números e tabelas, a vontade que tinha era usar palavras que pulsassem, que saltassem do papel, dançassem a meia noite nas bocas dos amantes. O dia passa sem que nada aconteça de diferente do anterior, a vontade que tinha era que cada dia fosse único, cheio de poesia, música e dança, belezas a se admirar. À noite, cansado da monotonia do trabalho, senta e vê novela, para depois dormir com seus pesadelos de sempre, sem jamais realizar seus desejos. No outro dia tudo outra vez, ele e sua corrente invisível.