O velho moribundo, decrépito, canceroso e de rugas cinzas já estava naquela cama havia meses, agonizante, sentindo o sabor do plástico dos tubos ao seu redor. Só via um teto branco, que logo havia se tornado familiar, e enfermeiras passando atarefadas, em intocáveis uniformes brancos, e médicos empertigados em suas roupas igualmente brancas. Tudo lhe lembrava do vazio de estar deitado ali, toda aquela brancura lhe causava náuseas, verdadeiro horror a toda aquela insuperável pureza.
Só ouvia o constante bip da máquina ao lado, os gritos de dor e horror que ecoavam quase todas as noites, impedindo-o de dormir tranqüilamente, o gemido de outros moribundos, os passos de sapatos, o murmurinho da conversa das enfermeiras. Sons que lhe causavam repugnância. Tudo ali lhe era insuportável. Tudo lhe era distante, não pertencia àquele lugar. Então, mergulhava em devaneios diurnos, que se transformavam em pesadelos durante a noite.
Devaneios do passado. Sua mente mergulhava numa letargia, seus olhos vitrificavam, encarando o teto, enquanto seus pensamentos viajavam, abrindo o véu do passado. Via-se então há 60 anos atrás, numa orgia monstruosa, numa dança erótica e profana, regada a vinhos baratos, uísque ruim, cerveja quente, e talvez nenhuma camisinha. Essa lembrança era uma das mais freqüentes.
Mas havia outras. Lembrava das manhãs, a hora mais temida do dia, a hora em que nada fazia sentido, a hora em que a vida parecia pequena demais. Ele odiava o despertar. Sempre a cabeça pesada da bebida da noite passada. E acordava para mais um dia de cerveja, roupas sujas, conversas com outros poetas e escritores, digressões sobre bebida, mulher, cavalos e às vezes poesia. As tardes eram todas iguais, a hora de sentar e escrever algo, em seu apartamento solitário. Às vezes uma visita. E a noite, dessa graciosa e bela companheira ele lembrava bem, cada uma era diferente, cada orgia, cada bebedeira, cada bar, cada briga, tudo que se referia à noite lhe vinha com detalhes, e os lembrava com prazer.
Era acordado de seus devaneios pela enfermeira gorda, na hora do banho e da comida. Essas eram as horas mais lentas, mais melancólicas, onde ele se dava conta do presente, onde este o atingia como um elefante. Não falava com ninguém, não respondia a ninguém, e ninguém o visitava.
Nessas horas de consciência, seu ímpeto era de correr e se jogar pela janela. Mas não havia forças. Então se punha a imaginar que tipo de vida teria levado cada um de seus vizinhos de cama, que amores poderiam ter tido, que dissabores, que amarguras? E o velho mais uma vez entrava numa viagem mental. Dessa vez visitando vidas que não tinha vivido.
E passava os dias naquela cama, completamente alheio ao mundo, o mundo completamente alheio a ele. Seu médico lhe era indiferente, e a enfermeira gorda não lhe excitava, aliás, já não se excitava há tempos...
Eis que numa noite especialmente fria, uma garrafa de uísque e uma carteira de cigarro apareceram ao lado de sua cama. O velho ganhou novas forças. Passou a noite bebendo e fumando. No fim passou mal, como nunca havia passado. Os médicos correram pra lhe socorrer, mas já era tarde, a vida do velho se esvaía. Então, ele se agarrou ao médico num impulso de forças finais, tossiu e vomitou toda a bebida em sua cara, e disse suas primeiras palavras em meses, e as últimas de sua vida: “te fode”.
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